Não tenho
tempo. Preciso contar a alguém como tudo aconteceu, mas estou sozinho; o
telefone está mudo, a casa às escuras. Eles pensam que estou dormindo e entram
sorrateiros. Acendi uma pequena vela que, se por um lado fornece o lume para
escrever, em contrapartida denuncia minha posição no sótão. Ouço seus passos lá
embaixo, na sala. Movem-se quietos, como cobras rastejando, mas posso
nitidamente ouvi-los.
Tudo começou
com um acidente. Voltava de uma reunião com amigos, onde bebêramos até ninguém
conseguir ficar de pé. Vim dirigindo, tendo mais dois acompanhantes a quem dei
carona. Em uma encruzilhada, um grupo de pessoas deitava oferendas a seus
orixás. Eu estava muito rápido, nem vi o que era. Hoje sei, mas naquele então,
achei ser um cachorro parado na esquina. Passei por cima do animal, senti seu
corpo rolando por baixo do carro e ainda o acompanhei pelo retrovisor. Os dois
caronas nada viram. Estavam bem piores que eu.
Ao acordar no
dia seguinte, o carro se encontrava amassado, um dos faróis quebrado e muito
sangue e carne por toda parte de baixo. Na traseira, preso ao pára-choque, um
naco de tecido branco me assustou. Eu lembrava do cachorro branco, mas aquilo
parecia um pedaço de camisa. E se não tivesse sido um cachorro? Não precisei
perguntar muito. Todos na cidade comentavam o atropelamento do pai-de-santo.
Como sou
proprietário de uma oficina mecânica, limpei e consertei o carro. Foi um
trabalho tão bem feito que quando fui investigado pela polícia, por ter um auto
semelhante ao descrito pelas testemunhas, nada foi encontrado. O atropelamento
tornou-se um desses mistérios insolúveis de cidade pequena.
Alguns meses
depois, passando à noite naquele mesmo lugar, achei ter visto o vulto branco e
desviei o carro. Olhei pelo retrovisor para ver se havia algo na rua, mas me
assustei: havia um homem me olhando do banco de trás! Instintivamente, pisei no
freio. Olhei para trás, vasculhei cada parte, mas não vi ninguém.
Quando achei que era apenas minha imaginação e
olhei para frente, estava lá novamente, na rua, a minha dianteira. Os faróis
estavam ligados e posso garantir que não foi imaginação: era um homem negro, de
cerca de sessenta anos, carapinha branca e curta, me fitando com um sorriso
malévolo. E seus olhos... Seus olhos eram gelados. Seria impossível a alguém
olhar para aqueles olhos sem arrepiar. Apontou o indicador para mim, como se me
acusando de algo e simplesmente desapareceu.
Devo
confessar que a partir daquele dia deixei de usar esse caminho... E a beber
mais também.
Certa tarde,
um empregado pediu o carro emprestado para levar sua mãe ao hospital e cedi. Ao
anoitecer, fui para um bar perto do trabalho. Na pior das hipóteses, se o rapaz
não retornasse, dormiria na oficina mesmo.
Bebi
bastante, como sempre. Levantei para ir ao banheiro, o empregado apareceu e
disse que me levaria para casa, o que aceitei. Sentei no banco do carona e
adormeci quase imediatamente. Os solavancos causados pela estrada barrenta me
acordaram e notei que estávamos chegando na encruzilhada onde atropelara o
homem. No instante em que ia dizer ao rapaz para reduzir a velocidade, ele
acelerou e eu vi a figura de branco novamente no mesmo lugar. Segurei o ombro
do motorista e ele me olhou. O terror se apossou de mim. Não era meu empregado!
Era o mesmo velho de olhos aterradores quem dirigia!
Aferrei-me ao
painel do velho opala e comecei a gritar. Gritei como um louco, tão alto que o
homem de branco na rua me olhou, enquanto passávamos velozmente por ele. Ver
aquele homem lá fora me aterrou ainda mais: era eu quem estava lá!
- Só pode ser
um sonho! – exclamei.
O velho negro
a meu lado soltou uma gargalhada sinistra e indagou:
- Seria bom
se fosse um sonho, não é mesmo?
Pensando no
quanto seria bom, abri a porta e me joguei para fora do carro. Se fosse um
sonho, nada me aconteceria. Se não fosse, os machucados causados pela queda do
carro em alta velocidade seriam o menor dos meus problemas.
Mal saltei, o veículo embicou na direção de um
poste e bateu violentamente. Instantaneamente, toda a região ficou às escuras.
Levantei com certa dificuldade e caminhei até o carro, cuja porta do carona
ainda encontrava-se escancarada. Sentado ao volante, desmaiado, estava o meu
empregado. Apoiei o joelho no banco do carona, na intenção de tirar o rapaz do
veículo, quando me seguraram pelo pulso direito, que ainda estava do lado de
fora. Fui violentamente puxado, mas minha mão prosseguiu aferrada ao carro. Um
homem alto, mais de dois metros de altura, usando um sobretudo vermelho me
segurou pelos ombros e começou a me cheirar.
- Você me
conhece, moleque? – indagou ameaçadoramente.
- Não,
senhor.
- Sabe quem é
ele, moleque? – apontou para o velho negro, que segurava minha mão direita
contra o teto do carro, perto da porta.
- Acho que
sim... – balbuciei.
- Mentira! –
gritou o homem de sobretudo vermelho – você não sabe nada! Ele era o meu servo!
Agora, é só lixo, como você vai ser um dia... não pode mais me servir... e foi
você o responsável.
- Foi sem
querer... – balbuciei novamente.
Só quem
passou por uma situação assim é capaz de compreender minha atitude naquele
momento. Eu queria reparar meu erro, mas também queria sair logo dali.
Aparentemente, como se lendo meus pensamentos, o homem me disse:
- Você vai
terminar o que ele começou!
Assenti
imediatamente com a cabeça e o sujeito sorriu, e era um sorriso de pura
maldade:
- Vamos selar
nosso trato – Disse.
Em seguida,
lambeu o próprio polegar e o esfregou em minha testa, fazendo algum desenho com
sua saliva. Cheguei a me sentir aliviado. Como que rindo do meu suspiro de
alívio, comentou:
- Pensa que é
só isso? Já lhe disse, você agora é meu. É assim que vamos selar nosso
acordo...
Em um gesto
rápido bateu a porta do carro na minha mão, ainda presa pelo velho, o que
arrancou de um único golpe meu indicador. Gritei de dor e pavor. Meu terror
chegou às raias da loucura ao vê-lo pegar meu dedo e comer.
O negro soltou minha mão e comecei a gritar
desesperado:
- Meu Deus!
Meu Deus!
Arranquei um
pedaço da camisa para fazer um torniquete e, quando olhei de volta, ele e o
velho haviam desaparecido.
Minutos
depois, chegou uma ambulância, que me levou para o hospital. Meu empregado
estava morto no volante. Os médicos cuidaram de meus ferimentos e ficou tudo
registrado como acidente.
Voltei para
casa no dia seguinte e me embriaguei para esquecer a dor da mão. À noite, por
volta das nove, o telefone tocou. Era a mesma voz do homem de sobretudo
vermelho:
- Leve uma
galinha até a “nossa” encruzilhada à meia-noite, moleque.
- Preta?
- Não
importa.
Depois que
desligou, fiquei tentado a chamar a polícia, mas havia coisas que não gostaria
de revelar. Além disso, que mal faria levar uma galinha a uma encruzilhada?
Saí de casa
cerca de meia hora antes do combinado, carregando uma de minhas aves.
Poucos
minutos antes do horário marcado, cheguei à fatídica encruzilhada, mas não
havia ninguém. Exatamente à meia-noite, o relógio apitou e, instintivamente,
olhei para a estrada. Um carro passou velozmente por mim e tive absoluta
certeza que era eu no banco do carona. Não cheguei a acompanhar a trajetória do
carro, porque, naquele instante, estava rodeado por diversos elementos, com
suas carrancas furiosas. Subjugaram-me com facilidade. Dentre os rostos, pude
identificar a figura de olhar sinistro.
- Eu trouxe a
galinha...
- Eu sei...
meus amigos estão com fome...
Um deles me
segurou o braço e de uma só dentada, arrancou parte da carne de meu antebraço.
Gritei com todas as forças. O homem do sobretudo vermelho afastou os outros de
mim:
- Eles querem
apenas uma parte de seu corpo. Que tal um braço? – indagou.
Olhei para
aquela multidão de rostos sinistros e assenti com a cabeça. O que mais poderia
fazer?
Apoiaram meu
braço em uma pedra. Um machado surgiu não sei de onde e, de um só golpe, meu
antebraço esquerdo foi arrancado, com um grito de agonia meu. Os monstros se
revezavam em mordidas...
... mordidas
no que me pareceu um banquete. O homem alto me segurou pelos ombros, enquanto
eu tirava o cinto e fazia um torniquete no que sobrou do membro.
- Vá rápido,
moleque! Volte para casa, antes que eles descubram que você ainda pode lhes dar
mais. Amanhã chamarei novamente.
A dor era
insuportável, me sentia a ponto de desmaiar, mas sabia que se isso ocorresse,
seria totalmente devorado. Corri o mais que pude para casa.
Acordei com
febre e com uma dor insuportável no braço. Peguei o telefone para ligar para a
polícia, mas estava mudo e adormeci novamente. Despertei já noite. A casa
estava às escuras. Peguei novamente o telefone, mas ainda estava mudo. Mal o
coloquei no gancho, tocou. Apavorado, atendi. Era a voz do homem alto.
- Você já
sabe o que queremos. Venha à meia-noite outra vez.
- Não vou! –
exclamei – Vou chamar a polícia!
- Então nós
vamos até você.
Bati o
telefone, desejando fugir, mas estou muito fraco. Moro afastado, não há vizinho
que possa me ajudar. Coloquei diversos móveis contra a porta da frente e subi
para o sótão, com um toco de vela. Sei que estão se aproximando. Ouço seu
resfolegar. Esconderei essas folhas por baixo de algumas telhas. Sei que alguém
um dia irá ler minha história e compreender meu desaparecimento.
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