sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A Preguiça

O grupo atravessava uma picada em direção ao interior. Precisavam chegar ao outro lado da Montanha dos Vapores. Os uniformes camuflados do Exército, os coturnos emborrachados até o meio da canela, as mochilas pesadas nas costas e ainda, a gaiola.

 A missão era aparentemente simples: capturar a onça parda que rondava o posto de vigilância da fronteira. Para evitar demonstrações de hostilidade aos soldados do outro País, o Comandante da Brigada de Infantaria de Fronteira ordenara que não se utilizassem helicópteros para chegar ao posto. Apenas, quando a onça fosse capturada, um aparelho seria deslocado para o local, custeado pelo Ibama. Os soldados, entretanto, iriam a pé. Não fosse o trambolho que eram obrigados a carregar, até que seria mais uma jornada de rotina.

O rádio emitiu um zumbido curto. Sargento Molina, chefe do pelotão, atendeu prontamente.

- Capivara 4 na escuta!

- Que droga de capivara é essa? O nome da missão é Tigre! – a voz do outro lado era do Capitão Souza.

- Mas no Brasil não tem tigre! Tem Capivara... – ponderou o sargento.

- Ordem direta do General Torres Moura, não devemos trocar.

- Talvez o General Torresmo Ura não saiba que no Brasil não tem tigre... – o Sargento Molina havia pronunciado a pausa no nome do General de maneira quase imperceptível. Quase.

- Ouvi direito, Tigre 4? Como chamou sua Excelência?

- Chamei quem, Capitão? – fez-se de desentendido.

- O General Torres Moura... – a ira do Capitão era visível, ainda que os soldados apenas pudessem ouvir sua voz.

- Chamei ele não, meu Capitão.

- É Tigre 1!

- Precisa gritar não, Tigre 1! Estamos recebendo bem...

O berro ecoou pelo matagal:

- Eu não estou gritando!

Os soldados se entreolharam. O idiota do sargento Molina irritava qualquer um mesmo.

Após certa pausa, o rádio voltou a emitir o chamado:

- Tigre 4, Tigre 4! Tigre 1 chamando...

- Tigre 4 na escuta. – Sargento Molina já estava se irritando. Parou, sentou em um tronco caído e começou a se abanar com o boné.

- Tigre 3 quer saber quanto tempo ainda vão levar.

- Estamos a duas horas da posição de Trigue Tês... Trigue... Trigre... – não saía de modo algum – Deles lá... Vamos chegar daqui a duas horas.

- É muito. Precisam chegar em menos de uma hora. Tomem um atalho...

- Ok! Câmbio e desligo...

Molina enterrou com força o boné na cabeça e resmungou:

- Atalho! Humpf! Como se tivesse atalho...

- Sargento! – chamou o Cabo Anselmo – Podemos usar a preguiça do Vale Fundo e descer pelo outro lado... Adiantaríamos uma hora.

- Então vamos para lá.

A preguiça do Vale Fundo era uma corda amarrada do topo da montanha para o topo da sua vizinha, cuja descida era bem mais suave. O problema consistia no fato de que a travessia era feita de maneira rudimentar, abraçado à corda, atravessando o vale de cerca de quarenta metros de altura.

- E a gaiola? Como a atravessamos?

- Amarramos a corda que trouxemos nela, e o último a atravessar amarra a outra extremidade da corda no meio do cordame. Basta dar um puxão e a gaiola vai para o outro lado.

Enquanto se encaminhavam para cabo da preguiça, os três soldados, mais o Sargento Molina e Cabo Anselmo, discutiam como fariam a travessia. Todos ali já haviam praticado o rapel naquele local. Não seria novidade para nenhum deles.

A um estudioso de geografia, as duas montanhas pareceriam apenas uma, cortada por um rio que secara alguns milhares de anos passados. De qualquer modo, o pelotão estava ali apenas para cumprir uma ordem, levar a gaiola para o outro lado, no menor tempo possível, e não fazer uma dissertação sobre formações rochosas.

Chegados ao topo da montanha, divisaram a corda. Era um vão de cerca de trinta metros, sobre uma ravina de quarenta. Ao reparar que o cabo da preguiça possuía cerca de trinta metros, Sargento Molina teve uma idéia:

- Salvador, qual o comprimento da corda que estamos carregando?

- Vinte metros, Sargento. – respondeu de pronto o soldado que a carregava.

- Tive uma idéia... Se der certo, ganharemos no mínimo meia hora...

Ninguém perguntou qual era a idéia do Sargento. Todos sabiam que ele a diria de qualquer maneira.

- Amarramos uma ponta da corda na gaiola. A outra ponta um soldado vai e amarra no meio do cabo da preguiça. Como a gaiola é grande o suficiente para cabermos nós todos nela, entramos e usamos a gaiola como um bondinho. Chegaremos lá todos juntos, rapidamente.

- Nós todos dentro dela? – o Soldado Julião não conseguia compreender bem o que o Sargento dizia – Nós cinco vamos ficar espremidos...

- Cinco não, sua besta! – Cabo Anselmo não tinha paciência com os menos afortunados de cérebro. – Um vai atravessar o rapel para amarrar a corda no meio do caminho...

- Salvador! Desenrole a corda e amarre bem firme no topo da jaula.

Enquanto o sargento e o soldado amarravam a gaiola, o Cabo Anselmo decidiu escolher o que iria atravessar o cabo do modo costumeiro e amarrar a outra ponta da corda. Não compreendeu bem o motivo pelo qual os dois soldados restantes, Julião e Tobias foram voluntários. Achou que era excesso de zelo.

Tobias foi o escolhido, para desespero de Julião.

- Cabo!- chamou Julião – Eu poderia ir com ele para ajudar a amarrar a corda. Ou para verificar se ficou bem amarrada...

- Iria nos atrasar. Entre na Gaiola.

O soldado Tobias já ia adiantado pendurado na corda. A certa altura, onde considerava o meio, parou. Preso pelas pernas, dependurado de cabeça para baixo, a uma altura considerável do solo, Tobias, usando as mãos, amarrou a corda firmemente na outra. Parecia um artista de circo!

Por garantia, o Sargento Molina esperou o soldado descer do outro lado para fazer com que os outros puxassem com toda a força a corda da gaiola. Não seria bom se a corda arrebentasse no meio do caminho.
De um único impulso, ordenou que os subordinados entrassem na gaiola.

- Preparar para embarcar no veículo! Embarcar!

Cabo Anselmo foi o primeiro, o sargento entrou a seu lado, pois o último a entrar é que daria o impulso para que a gaiola saltasse. Esse seria o soldado Julião, que nesse momento ainda tentou uma última vez:

- Sargento! Eu poderia atravessar o rapel depois... Daria um impulso melhor se estivesse do lado de fora...

- Cale-se! Entre e feche a gaiola.

Os quatro homens, dentro de uma jaula de aproximadamente um metro cúbico, ficavam realmente espremidos. Sargento Molina e Cabo Anselmo voltados para a outra montanha, onde esperavam chegar em breve; o soldado Julião estava na retaguarda, ao lado de Salvador, olhando o caminho por onde vieram. Sem pestanejar, fechou a gaiola e deu um impulso com o pé.

Não seria de estranhar descobrir, tempos depois, que na Escola de Sargentos o Aluno Molina jamais ouvira falar na Lei da Gravidade. Nem muito menos na Lei de Morphy.

Do outro lado da montanha, o Soldado Tobias viu a jaula escorregar pela lateral do barranco. Ambas as cordas resistiram ao peso da jaula. Mas cederam. Sargento Molina agarrado às barras de ferro da jaula arregalou um par de olhos que por muito tempo depois continuariam assim. Trincou os dentes e gritou. A seu lado, o Cabo Anselmo, também aferrado às barras, gemia alto, repetidamente:

- Má idéia, má idéia, má idéia...

Com o peso da jaula, o cabo da preguiça esticou, e fez uma barriga de cerca de cinco metros. A corda que segurava a gaiola também esticou e o conjunto desceu cerca de seis a sete metros abaixo de onde planejavam chegar.

Os anos se passariam e Tobias jamais conseguiria descrever com riqueza de detalhes suficiente a cena que presenciara: quatro homens, espremidos dentro de uma jaula do tamanho de uma caixa d’água de mil litros, atravessando um vale de cerca de quarenta metros de altura. Os dois mais graduados, e por isso mesmo, viajando na frente do veículo, agarrados às barras, olhos arregalados, trânsidos de pavor; os outros dois, menos afortunados no soldo, ganhando ainda menos que os dois loucos da dianteira, que conceberam tal idéia mirabolante, ainda mais apavorados, pois não faziam a menor idéia do rumo que as coisas tomaram, apenas com uma certeza na cabeça, desde antes do embarque: aquilo não daria certo. Um único, sonoro e duradouro grito, até se chocarem violentamente contra o paredão.

De certo modo, deram sorte. Depois de se chocar contra a parede de granito duas vezes, a gaiola ficou pendurada sobre o vale por apenas mais um dia, que foi o tempo necessário para que as tropas de salvamento chegassem e os retirassem de lá. As fraturas pelo corpo o tempo se encarregou de curar. 

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