Estava vestido de Papai Noel, chegando no centro comercial para um dia de trabalho duro, quando foi sequestrado. Enfiaram um saco preto em sua cabeça e o colocaram no banco de trás de um carro, que saiu em disparada. Mesmo com o saco na cabeça, conseguia sentir o frio do cano da arma encostado na nuca.
- Aí, velhinho - disse uma voz ao ouvido - fica quietinho que tudo termina bem.
Depois de uma viagem interminável, o carro parou e o arrastaram para fora. Quando lhe tiraram o capuz, estava defronte a um homem de olhar sádico.
- Fala aí, amizade! - sorriu, estendendo a mão para Jorge - desculpa a bagunça da casa...
Havia um cadáver em um canto e muito sangue espalhado pelo aposento, que parecia o escritório de um abatedouro.
- Somos um grupo de cidadãos de bem aqui, tomando conta da comunidade. Todo mundo de bem - frisou - vê o Catatau? Bombeiro! Ali é o Marreta, funcionário público; aquele outro com a camisa cheia de sangue é o Malvadeza, nosso principal... aham... colaborador.
- Doutor - é sempre bom começar com um tratamento digno - deve estar havendo algum engano...
O sujeito atrás de Jorge, grande como um coqueiro, deu-lhe um tapa na cabeça.
- Deixa o chefe falar!
O chefe ergueu a mão, como quem desculpava Jorge e prosseguiu.
- Eu mesmo, era da polícia, só que uns petralhas da Corregedoria ficaram me perseguindo até eu ser... encostado.
- Mas o senhor é inocente, chefe! A última testemunha inclusive, que tá ali no canto, desmentiu tudo antes de passar dessa pra melhor.
- Sim, sim - concordou com um sorriso - o pessoal me chama de Teresão, porque eu pareço a Madre Teresa de Calcutá, de tanta caridade que faço.
- O senhor merecia o "nobre" da Paz! - emendou Malvadeza, limpando um facão que ainda pingava sangue.
- Exatamente por isso, estamos organizando uma festa de Natal pras criancinhas aqui da comunidade, com presentes, refrigerantes, bolo, uísque importado, pó pra quem é de pó, pedra pra quem é de pedra, o senhor está entendendo?
- Sim, sim... - balbuciou Jorge.
- Só ainda não conseguimos o Papai Noel. Minha esposa a... - virou-se para o Coqueiro - qual delas foi mesmo?
- A Dona Michele... - respondeu Marreta.
Teresão fez cara de quem não estava entendendo.
- A loura que o senhor deu aquela moto...
- Ah! Isso! - voltou-se para Jorge - Minha esposa Michele foi no Shopping e viu como o senhor se dá bem com as crianças e teve a ideia de chamá-lo.
- E quando seria a festa? - Jorge começou a pensar em uma desculpa para não aparecer.
- É agora, chefia! - Malvadeza gargalhou.
- Mas eu tenho trabalho no shopping...
- Não esquenta que vou mandar um recado pro administrador, que ele "tá fechado" com a gente...
Catatau sussurrou em seu ouvido:
- Aceita logo que tá uma desgraça arranjar lugar pra largar cadáver...
A festa foi uma beleza. As crianças, grande maioria filhas de Teresão, desfilavam com suas mães, cada uma com uma saia menor que a outra. Uma delas sentou em seu colo:
- Papai Noel, eu quero um presente... - e mordeu a orelha de Jorge.
- Papai Noel, eu quero um presente... - e mordeu a orelha de Jorge.
Outra menina, mal entrando na adolescência aproximou-se e disparou:
- Se me puxar pro seu colo te cubro de porrada!
- Se me puxar pro seu colo te cubro de porrada!
Um menino:
- Papai Noel, quero um AR-15 de presente de Natal.
Entre uma criança e outra, alguém servia uma dose de uísque com pedras de gelo.
Lá pelas tantas, Jorge estava completamente embriagado. Nem percebeu o corre-corre quando a polícia chegou. Milicianos sendo algemados e as mulheres colocando sacos de cocaína em sua roupa, avolumando consideravelmente a barriga do Papai Noel. A polícia levou os milicianos, mas, incrivelmente, sequer notaram sua presença.
As crianças foram levadas embora e ficaram apenas as mulheres bebendo e conversando. Jorge, abandonado a um canto, distraia-se com uma garrafa de uísque e cubos de água de coco congelada.
A mulher de saia e calcinha azul transparente, que havia mordido sua orelha, aproximou-se.
- E meu presente?
- Minha filha, fui contratado só para dar os presentes daquele saco...
Outra mulher se aproximou, tentando sentar na outra perna de Jorge:
- Já tá dando em cima do Papai Noel, piranha?
- Eu vi primeiro!
- Ele é velho...
- Mas é o único homem aqui!
- E aí, vovô? Topa pegar duas?
Jorge acordou com uma dor de cabeça terrível. Garrafas vazias esparramavam-se pelo chão; a seu lado, uma cartela de viagra faltando dois comprimidos; três mulheres nuas completavam a cena. Ergueu-se pesadamente e percebeu que da fantasia só mantinha os sapatos de ponta virada. De alguma forma, sabia onde era o banheiro da casa. Foi até o sanitário e percebeu as marcas de dentes em seu pênis, que doía terrivelmente.
Olhou no espelho e notou que a barba havia sido reduzida a um cavanhaque, que o deixava com a aparência de um bode. Mas o terrível era o que estava escrito em sua careca: "Garanhão das Milicianas". Tentou apagar com água e sabão, mas a tinta parecia indelével. Para sua própria segurança, precisava esconder aquilo. Pegou uma toalha verde e a enrolou na cabeça.
Ao lado de onde estivera a toalha, pendurado em um gancho da parede, havia um roupão da mesma cor, que Jorge vestiu e amarrou na cintura.
Estava saindo do banheiro, quando ouviu alguém colocar uma chave na fechadura da porta da frente e correu para um dos quartos da casa. Ouviu a porta se abrir e a voz de Teresão gritando:
- Que porra é essa?! Cadê o puto do Papai Noel?! Vou matar esse desgraçado!
Jorge abriu a janela do quarto e pulou para fora da casa. Dois passos adiante e um muro baixo permitiram o acesso à rua. Estava caminhando na calçada quando lhe seguraram o braço:
- Você é o Papai Noel?! - era Teresão com uma pistola na mão.
- Não senhor! Eu sou um duende ajudante! - e alisou o cavanhaque.
- Sorte a sua. Mas corre que hoje eu não tô bom! - Teresão virou nos calcanhares e Jorge saiu correndo pela rua, de roupão e toalha verde enrolada na cabeça.
Já que estava naquela situação, achou por bem manter o disfarce - porque duende ajudante de Papai Noel também deseja Feliz Natal.
- Feliz Natal a todos! Feliz Natal a todos! - Gritava enquanto corria - Feliz Natal!
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