terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Natal do Duende

Para falar a verdade, Jorge não tinha lá muita escolha. A aposentadoria mal cobria os gastos com os remédios. Todo ano prometia que aquele seria o último em que se vestiria de Papai Noel no shopping. Odiava aquelas mães com seus fedelhos melequentos, que lhe puxavam a barba pensando ser falsa. Odiava neném cagado, mas parecia que as mães esperavam seus rebentos encherem as fraldas e abandoná-los em seu colo, para uma fotografia que durava uma eternidade. Não era a toa que considerava aromatizador de ambientes um item indispensável para um Papai Noel.


Estava vestido de Papai Noel, chegando no centro comercial para um dia de trabalho duro, quando foi sequestrado. Enfiaram um saco preto em sua cabeça e o colocaram no banco de trás de um carro, que saiu em disparada. Mesmo com o saco na cabeça, conseguia sentir o frio do cano da arma encostado na nuca.

- Aí, velhinho - disse uma voz ao ouvido - fica quietinho que tudo termina bem.

Depois de uma viagem interminável, o carro parou e o arrastaram para fora. Quando lhe tiraram o capuz, estava defronte a um homem de olhar sádico.

- Fala aí, amizade! - sorriu, estendendo a mão para Jorge - desculpa a bagunça da casa...

Havia um cadáver em um canto e muito sangue espalhado pelo aposento, que parecia o escritório de um abatedouro.

- Somos um grupo de cidadãos de bem aqui, tomando conta da comunidade. Todo mundo de bem - frisou - vê o Catatau? Bombeiro! Ali é o Marreta, funcionário público; aquele outro com a camisa cheia de sangue é o Malvadeza, nosso principal... aham... colaborador.

- Doutor - é sempre bom começar com um tratamento digno - deve estar havendo algum engano...

O sujeito atrás de Jorge, grande como um coqueiro, deu-lhe um tapa na cabeça.

- Deixa o chefe falar!

O chefe ergueu a mão, como quem desculpava Jorge e prosseguiu.

- Eu mesmo, era da polícia, só que uns petralhas da Corregedoria ficaram me perseguindo até eu ser... encostado.

- Mas o senhor é inocente, chefe! A última testemunha inclusive, que tá ali no canto, desmentiu tudo antes de passar dessa pra melhor.

- Sim, sim - concordou com um sorriso - o pessoal me chama de Teresão, porque eu pareço a Madre Teresa de Calcutá, de tanta caridade que faço.

- O senhor merecia o "nobre" da Paz! - emendou Malvadeza, limpando um facão que ainda pingava sangue.

- Exatamente por isso, estamos organizando uma festa de Natal pras criancinhas aqui da comunidade, com presentes, refrigerantes, bolo, uísque importado, pó pra quem é de pó, pedra pra quem é de pedra, o senhor está entendendo?

- Sim, sim... - balbuciou Jorge.

- Só ainda não conseguimos o Papai Noel. Minha esposa a... - virou-se para o Coqueiro - qual delas foi mesmo?

- A Dona Michele... - respondeu Marreta.

Teresão fez cara de quem não estava entendendo.

- A loura que o senhor deu aquela moto...

- Ah! Isso! - voltou-se para Jorge - Minha esposa Michele foi no Shopping e viu como o senhor se dá bem com as crianças e teve a ideia de chamá-lo.

- E quando seria a festa? - Jorge começou a pensar em uma desculpa para não aparecer.

- É agora, chefia! - Malvadeza gargalhou.

- Mas eu tenho trabalho no shopping...

- Não esquenta que vou mandar um recado pro administrador, que ele "tá fechado" com a gente...

Catatau sussurrou em seu ouvido:

- Aceita logo que tá uma desgraça arranjar lugar pra largar cadáver...

A festa foi uma beleza. As crianças, grande maioria filhas de Teresão, desfilavam com suas mães, cada uma com uma saia menor que a outra. Uma delas sentou em seu colo:

- Papai Noel, eu quero um presente... - e mordeu a orelha de Jorge.

Outra menina, mal entrando na adolescência aproximou-se e disparou:

- Se me puxar pro seu colo te cubro de porrada!

Um menino:

- Papai Noel, quero um AR-15 de presente de Natal.

Entre uma criança e outra, alguém servia uma dose de uísque com pedras de gelo.

Lá pelas tantas, Jorge estava completamente embriagado. Nem percebeu o corre-corre quando a polícia chegou. Milicianos sendo algemados e as mulheres colocando sacos de cocaína em sua roupa, avolumando consideravelmente a barriga do Papai Noel. A polícia levou os milicianos, mas, incrivelmente, sequer notaram sua presença.

As crianças foram levadas embora e ficaram apenas as mulheres bebendo e conversando. Jorge, abandonado a um canto, distraia-se com uma garrafa de uísque e cubos de água de coco congelada.

A mulher de saia e calcinha azul transparente, que havia mordido sua orelha, aproximou-se.

- E meu presente?

- Minha filha, fui contratado só para dar os presentes daquele saco...

Outra mulher se aproximou, tentando sentar na outra perna de Jorge:

- Já tá dando em cima do Papai Noel, piranha?

- Eu vi primeiro!

- Ele é velho...

- Mas é o único homem aqui!

- E aí, vovô? Topa pegar duas?

Jorge acordou com uma dor de cabeça terrível. Garrafas vazias esparramavam-se pelo chão; a seu lado, uma cartela de viagra faltando dois comprimidos; três mulheres nuas completavam a cena. Ergueu-se pesadamente e percebeu que da fantasia só mantinha os sapatos de ponta virada. De alguma forma, sabia onde era o banheiro da casa. Foi até o sanitário e percebeu as marcas de dentes em seu pênis, que doía terrivelmente.

Olhou no espelho e notou que a barba havia sido reduzida a um cavanhaque, que o deixava com a aparência de um bode. Mas o terrível era o que estava escrito em sua careca: "Garanhão das Milicianas". Tentou apagar com água e sabão, mas a tinta parecia indelével. Para sua própria segurança, precisava esconder aquilo. Pegou uma toalha verde e a enrolou na cabeça.

Ao lado de onde estivera a toalha, pendurado em um gancho da parede, havia um roupão da mesma cor, que Jorge vestiu e amarrou na cintura.

Estava saindo do banheiro, quando ouviu alguém colocar uma chave na fechadura da porta da frente e correu para um dos quartos da casa. Ouviu a porta se abrir e a voz de Teresão gritando:

- Que porra é essa?! Cadê o puto do Papai Noel?! Vou matar esse desgraçado!

Jorge abriu a janela do quarto e pulou para fora da casa. Dois passos adiante e um muro baixo permitiram o acesso à rua. Estava caminhando na calçada quando lhe seguraram o braço:

- Você é o Papai Noel?! - era Teresão com uma pistola na mão.

- Não senhor! Eu sou um duende ajudante! - e alisou o cavanhaque.

- Sorte a sua. Mas corre que hoje eu não tô bom! - Teresão virou nos calcanhares e Jorge saiu correndo pela rua, de roupão e toalha verde enrolada na cabeça.

Já que estava naquela situação, achou por bem manter o disfarce - porque duende ajudante de Papai Noel também deseja Feliz Natal.

- Feliz Natal a todos! Feliz Natal a todos! - Gritava enquanto corria - Feliz Natal!

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